Crônica malcriada
 



Cronicas

Crônica malcriada

Marcos Maia


Resolvi comprar um apartamento. Comecei a pesquisar preços e a comparar com meu saldo bancário. Entre uma e outra crise de desespero, fui selecionando opções até passar às visitas com corretores de imóveis.

- Senhor, essa propriedade é muito boa. Quadra arborizada. Vizinhança tranquila. Perto do comércio.

- E esse prédio ali em frente o que é?

- Uma igreja. Acho que batista. Qual é a sua denominação?

- Marcos.

- Me referia à sua denominação religiosa.

- Ah, desculpe. Sou bastante ateu. Não tenho intenção de ir à missa, mas de evitar que ela me incomode. Sou meio chato com barulho, sabe?

Já passei, mais vezes do que deveria, pelo papelão de incomodar o próximo mais feliz e expressivo que eu. Seja por conta de festa de vizinho, de adolescente intoxicado embaixo do prédio ou de aposentado bebum no bar da esquina. Pois é. Já morei perto de todos esses personagens. Não sei se são eles que me perseguem ou minha energia reclamona que os atrai. "Por favor, poderiam dar uma moderada no volume?". "Conheço a tua mãe, menino. Vou ligar pra ela". "Pelamordedeus, meu senhor. Com a sua idade e nesse estado". Aí estão alguns exemplos de intervenções minhas, na sincera tentativa de estabelecer uma convivência pacífica e silenciosa com o próximo. Sei que são todas toscas, clichês e na maioria das vezes pouco eficazes.

Então comecei a imaginar a nova temporada da minha luta contra os decibéis, substituindo os vizinhos pagãos por congregações religiosas. Tem missa que é pior que festa de adolescente com velhinho bebum. Os fiéis se empolgam, recebem o espírito do Senhor e gritam se contorcendo. Os músicos entoam suas melodias a plenos pulmões no microfone, com ajuda de amplificadores. Enquanto isso o DJ - perdão - o pastor dá corda. Será que Jesus não escuta? Eu escuto. Imagino que nem adiantaria apelar ao "pelamordedeus", já que o vizinho cristão tem mais em lugar de fala que eu. Aí fico me imaginando, no auge do meu desalento, sem conseguir dormir, entrando na igreja, de pijama e com o cabelo arreganhado. "A festa acabou, pessoal. Hoje é domingo. Amanhã todo mundo trabalha". Não. Acho que não ia funcionar.

O que me faz lembrar do drama vivido por um amigo meu, longe do domínio cristão. Ele foi, durante anos, vizinho de um templo hinduísta, cujos seguidores costumavam acordá-lo às seis da manhã com cantorias de devoção. "Hare hare krishna hare. Krishna krishna hare hare." Ele nunca superou. Até hoje se lembra da melodia. "Está gravada no meu DNA", me disse uma vez. Ele começou com intervenções educadas no portão da frente e à medida que era ignorado, passou para brigas vergonhosas, com direito a sambão às seis da manhã, na tentativa de competir com os mantras de adoração a Krishna. Quando apelou aos baldes de água por cima do muro, procurou terapia. Hoje ele está melhor. Ainda se recuperando.

Acho que tinha toda razão quem inventou aquele ditado. "Religião, futebol e política não se discutem". Dois desses quesitos são ponto pacífico para mim. Não gosto de futebol e deixei de discutir política há uns anos, quando comecei a perder a cordura ao fazê-lo. Sobrou religião como um vespeiro indefinido e difícil de ignorar. Tem cada vez mais devotos por aí e como bom ateu que sou, tenho um medo dos diabos de ir para o inferno.

- E então, senhor. Gostou do apartamento?

- Não sei. Não tem nada ao lado do boteco, não?


Marcos Maia fez algumas oficinas de escrita on line e atualmente participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.

 

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